08 abril, 2013

Essa mulher: o disco das transformações de Elis Regina - (Tia Clara e Dom Paulo)


O lançamento do décimo-sexto álbum de estúdio da carreira de Elis Regina, "Essa mulher", em 1979, é o que pode ser chamado de o disco das transformações. Primeiro, profissional: Elis havia acabado de deixar a gravadora Philips e lançou o disco pela Warner Music. Segundo, físicas: a Pimentinha deixou de lado o corte de cabelo "joãozinho" e as apresentações teatrais que conduziram seu trabalho na primeira metade da década de 1970. A capa e a parte interna do disco, mais as fotos promocionais exalam que Elis adotou uma postura mais suave e feminina, com destaque para a presença da orquídea, em uma referência à uma das mais consagradas intérpretes do jazz americano na década de 1950, Billie Holiday.

A produção de "Essa mulher" ficou à cargo de Mazola e os arranjos aos cuidados de Cesar Camargo Mariano, marido de Elis na ocasião. Em cada música, a artista procurou somar emoção à sua consagrada perfeição de técnica vocal. Vamos começar pelo caso da música mais popular do disco: "O bêbado e a equilibrista", do cancioneiro João Bosco-Aldir Blanc. Algumas histórias da faixa já são bem conhecidas, outras nem tanto. As conhecidas: "O bêbado e a equilibrista" marcou dez vez a aceitação de Elis Regina no público mais engajado politicamente, em plena agonia da Ditadura Militar. Não é preciso dizer, mas já dizendo, que o "irmão do Henfil", citado na letra de Aldir é o saudoso sociólogo Herbert de Souza, é que as Marias e Clarices que choram no solo do Brasil, são respectivamente a mãe de Betinho e Henfil e a mulher do jornalista Vladmir Herzog (assassinado em 1975), Clarice. As não tão conhecidas: "Caía a tarde feito um viaduto" é uma referência a uma das tragédias mais marcantes na história do Rio, a queda do Elevado Paulo de Frontin (ainda em construção) na Zona Norte do Rio, em 1971. O desastre deixou dezenas de mortos e Aldir Blanc, morador da região, relatou certa vez em um documentário a preocupação surgiu após tomar conhecimento da notícia, pois seu avô passava naquele local na hora do acidente. Outra informação interessante diz respeito à introdução de "O bêbado e a equilibrista": algumas notas fazem breve referência ao "Smile", de Charles Chaplin:
A grande parte das faixas de "Essa mulher" é reservada ao romantismo e feminilidade ao qual o disco se propõe. Começando pela música-título, autoria de Joyce e Ana Terra. Elis, com habilidade, empresta força e vitalidade à personagem aparentemente frágil da canção: "Ah, como essa coisa é tão bonita / Ser cantora, ser artista / Isso tudo é muito bom / E chora tanto de prazer e de agonia / De algum dia, qualquer dia / Entender de ser feliz".
O mangueirense Cartola presenteou "Basta de clamares inocência" para Elis, que concedeu uma interpretação única e definitiva, com uma graça irônica nesta rejeição ao reatamento amoroso que pode ser percebida no clipe da música gravado para a "Rede Globo" e ainda mostra suas capacidades vocais com um belo gorgeio ao final da gravação: "Quando você partiu disseste chora, não chorei / Caprichosamente fui esquecendo que te amei / Hoje me encontras tão alegre e diferente / Jesus não castiga um filho que está inocente":


A obra contou com participação de Cauby Peixoto na parte final da faixa "Bolero de satã", autoria de Guinga e Paulo César Pinheiro. Admiradora do cantor desde os tempos áureos da Rádio Nacional, Elis, junto com Cauby, promove a dramaticidade que o bolero exige, e que começa com espantoso verso "Você penetrou como o sol da manhã".
O tom passional é mantido em "Pé sem cabeça", criação de Danilo Caymmi e Ana Terra: "Você me faz sofrer, ninguém me faz sofrer assim / O que era tanta beleza, num pé sem cabeça você transformou".
A interpretação densa faz parte de outras duas músicas de "Essa mulher": "Altos e baixos", de Sueli Costa e Aldir Blanc, e outra faixa bastante conhecida, "As aparências enganam", de Tunai e Sérgio Natureza. Ambas as faixas são marcadas pela sutileza dos pianos e órgãos de Cesar Camargo Mariano. Na primeira música, o destaque é a citação de um adoçante e de um tranquilizante na letra que trata discretamente de desacordo conjugal: "... uísque, Dietil, Diempax / Mas há que se louvar, entre altos e baixos / O amor quando traz tanta vida / Que até para morrer leva tempo demais". Em "As aparências enganam", Elis consagrou de vez a bela letra de Sérgio Natureza sobre o âmago de todo e qualquer relacionamento: "As aparências enganam / Aos que odeiam, aos que amam / Porque o amor e o ódio / Se irmam na fogueira das paixões / Os corações pegam fogo e depois / Não há nada que os apague...":
Há duas gravações da obra que Elis Regina reservou à explosão de divertimento: "Cai dentro", de Baden Powell e Paulo Cesar Pinheiro e "Eu hein, Rosa!", também de Paulo Cesar Pinheiro, mas em parceria com João Nogueira. E em "Beguine dodói", mais uma de Bosco e Blanc (junto com Claudio Tolomei), passa a impressão de ser uma continuação de um dos mais marcantes sucessos de Elis, "Dois para lá, dois para cá": "... Meias fumê, ligas vermelhas e um olhar fatal / Minha Dalila, volta depressa, o teu Sansão tá mal...".
Elis realizou várias homenagens no encarte do disco, algumas explícitas, outras implícitas. As explícitas foram as seguintes: ela dedicou "Essa mulher" para a "presença de Bituca e a ausência de Tenório Jr.". Bituca, para quem sabe ou não sabe, é o apelido de ninguém menos que Milton Nascimento. E Tenório Júnior é uma das maiores vítimas da grande desgraça que as ditaduras da América Latina representaram para a humanidade: pianista da trupe de Vinícius de Moraes e Toquinho, o músico desapareceu misteriosamente em 1976 na noite de Buenos Aires, às vésperas do golpe militar encabeçado pelo recém-condenado à prisão perpétua Jorge Rafael Videla. Anos depois, um dos agentes responsáveis pelo seu sequestro (e posterior assassinato sem devolução do corpo) deu a estúpida explicação: Tenório, que tinha mulher grávida e quatro filhos, foi confundido com um terrorista por causa de sua barba e cabelos compridos.
Uma das implícitas homenagens: na sequência, Elis Regina agradece à colaboração a "Tia Clara" e "Dom Paulo". Muito ficou conhecida a dificuldade de relacionamento pessoal que a cantora gaúcha tinha com suas colegas contemporâneas, em especial com Maria Bethânia. Mas Paulo Cesar Pinheiro, viúvo da saudosa Clara Nunes, deu uma explicação sobre o que tal homenagem representava na biografia de sua esposa escrita pelo jornalista Vágner Fernandes, lançada em 2007, sobre a convivência respeitosa entre as duas cantoras durante a produção do disco: "A coisa ficou tão bacana entre nós que, nesse disco, tem uma dedicatória da Elis que ninguém entendeu. Eu só vim perceber depois (...) Bati o olho na dedicatória e pensei depois: 'Como é que nunca percebi esse negócio aqui' (...) Elis nem comentou com a gente. A Clara morreu e nem deve ter visto isso. A Elis costumava chamar as pessoas pelo nome inteiro. Ela nunca me chamou de Paulinho, era sempre Paulo Cesar, ou para os outros, Paulo Cesar Pinheiro. A Clara era Clara Francisca (...) E ela achava que eu tinha liderança e brincava me chamando de 'Dom Paulo' como se eu fosse um 'capo'. Isso está no encarte. À Clara, ela se refere como 'Tia Clara'. Eu só fui perceber isso anos e anos depois na ficha técnica".
ficha

Viva Clara Claridade